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Um papo de cabeças fundidas

O bom de ver filmes de Woody Allen é que já se vai ao cinema sabendo que tipo de filme vai se encontrar. Neuroses, reuroses e neuroses. É como rever um velho amigo, ir ao mesmo cabelereiro desde que o salão se chamava barbearia, tomar Coca-Cola de garrafinha… Enfim, essas coisas que nos dão segurança e a (falsa) impressão que o tempo não passa tão rápido assim.

De certa forma, isso me deixou meio temeroso quando decidi ler “Cuca Fundida” (L&PM Pocket, 150 pág. ,R$ 13,00), famoso livro de artigos/contos (muito parecidos com as crônicas brasileiras) do cineasta nova-iorquino. Afinal, poderia perder um amigo (mesmo que imaginário) e companheiro de neuras.

O livro é composto por 17 textos publicados originalmente na revista americana “The New Yorker” e traduzidos magistralmente por Ruy Castro. O livro é o primeiro de uma trilogia livresca do mesmo estilo lançada por Allen, que conta ainda com “Sem Plumas” e “Que Loucura”.

Felizmente, meus temores foram dissipados já nas primeiras páginas. Inicialmente o prefácio de Ruy Castro anuncia as risadas (justo ele que também leva muito jeito pra coisa). O primeiro texto, intitulado “O Cara”, é com certeza um dos melhores da coletânea. Trata-se de uma sátira de filmes de detetive, desses de capa e chapéu. Ele é contratado para achar “O Cara”, que nada mais é do que Deus. Sendo assim, dá um belo passeio por correntes filosóficas, que se envolvem na discussão se “O Cara” está vivo ou morto, e fala até com o Papa, na figura de um grande mafioso.

Já em “A Morte Bate à Porta”, o terceiro artigo, a dita cuja entra pela janela do apartamento de um homem para levá-lo desta para melhor. No entanto, Nat (o pressuposto defunto) propõem um jogo de biriba. Se ganhar, fica mais 24 horas na terra. O texto em formato de peça de teatro (de um ato) e faz uma divertida sátira do filme “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergmam, onde o protagonista joga xadrez com a morte.

Em menor grau, mas muito engraçados, também são os textos “Uma Espiada no Crime Organizado”, onde se conta a história da Máfia americana; “A História de uma Grande Invenção”, sobre como surgiu e evoluiu o sanduíche; e “Como Realfabetizar um Adulto”, em que Allen conta, em tom de stand-up, sobre quais são os folhetos de educação para adulto que se lotam sua caixa de correio (alguma semelhança com e-mail?).

Valem destaque também o “Correspondência entre Gossage e Vardebedian”, que narra um maluco jogo de xadrez por correspondência; “Os Anos 20 Eram uma Festa”, uma sátira da classe artística em que muitos dos grandes nomes se relacionam com o protagonista de forma íntima (afinal, de bem perto ninguém é normal); “Conde Drácula”, que conta a história do vampirão fazendo uma visita durante um eclipse; e “Viva Vargas”, história de alguns revolucionários patéticos que inspirou o filme “Bananas”, de 1971.

No final, a sensação que fica é que Allen é realmente um ótimo cineasta, mas antes de tudo é um bom escritor. Seus filmes não são conhecidos pelos ângulos inusitados, tão pouco pela ousadia de sua proposta. São, sim, suportes para seus roteiros. “Cuca Fundida” pode não ser uma obra prima da literatura universal, mas não decepciona, e distribui as tão necessárias neuras modernas para rirmos de nós mesmos.

2 comentários em “Um papo de cabeças fundidas”

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