Agora em abril foi o aniversário de 501 anos da Lei da Pureza da Cerveja (Reinheitsgebot), quando também é comemorado o Dia Nacional da Cerveja na Alemanha. Por motivos políticos e econômicos da época, essa lei instituiu em 1516 na Bavária que a cerveja só poderia ser feita com 3 ingredientes: água, malte de cevada e lúpulo. A levedura e o processo de fermentação em si ainda não eram compreendidos na época. E enquanto em outros países estilos históricos vem sendo resgatados e outros estilos completamente novos vem surgindo, pouca coisa mudou na Alemanha desde então.
Mas recentemente aconteceu algo bem relevante e promissor no cenário cervejeiro alemão. Chama-se Deutsche Kreativbrauer e.V., ou “Associação Alemã dos Cervejeiros Criativos”, em uma tradução livre. Resolvi fazer esse texto porque, tirando meus amigos alemães e os portais alemães de notícias que sigo, não vi ainda ninguém falando sobre isso. Imagino que seja porque o site e a página no facebook ainda estão escritas apenas em alemão. Então dei uma lida geral no site e achei que valia dar um pouco de visibilidade fora da Alemanha para essa iniciativa incrível.
Atualmente, qualquer pessoa que queira produzir e vender cerveja na Alemanha estará sujeita ao VorLBierG (Vorläufiges Biergesetz, como é realmente chamada a lei da pureza) de 1993. E apesar do forte marketing aproveitado por muitas cervejarias, incluindo muitas fora da Alemanha, a lei nunca se tratou de ser algo para garantir a qualidade das cervejas. E o termo “pureza” pode e deve ser questionado, pois atualmente permite às grandes cervejarias a adição de açúcares, extratos concentrados e filtros químicos. Enquanto isso, se cervejeiros artesanais alemães quiserem por exemplo, vender cervejas com a adição de frutas frescas ou algum tempero, eles precisam de uma concessão especial para isso.
Mas felizmente uma geração nova de cervejeiros alemães resolveu se juntar para questionar e expor as incoerências dessa Lei da Pureza atual. São pessoas que começaram fazendo cerveja na panela e fazem parte da Craft Beer Revolution, trazendo aromas e sabores novos a um mercado tão inerte há séculos e que não se conformam em ter suas possibilidades criativas limitadas por uma lei estatal de 500 anos atrás. Entre os já associados temos importantes cervejarias que fazem parte dessa nova geração, como Schoppe Bräu Berlin, Kehrwieder Kreativbrauerei, Hopfenstopfer, Ale-Mania Craftbeer, Heidenpeters e Buddelship Brauerei Hamburg.
Mas o que é essa Associação? Fundada oficialmente no dia 30 de janeiro de 2016, a proposta central da Deutsche Kreativbrauer é uma campanha nacional para substituir o ultrapassado “Reinheitsgebot” pelo seu próprio selo e padrão de qualidade, nomeado de “Natürlichkeitsgebot”, ou seja, a “lei do natural”, ou o “naturalness” do processo de produção de cerveja. Essa mudança permitiria a adição de qualquer insumo, desde que seja natural e próprio ao consumo humano, com tratamentos físicos mínimos, como secagem, torrefação, moagem, etc. Grãos, frutas, sementes, ervas, especiarias e envelhecimento em madeira se tornariam permitidos, como já acontece no resto do mundo.
Mas o que faz a Natürlichkeitsgebot ser mais interessante do que qualquer outra lei do mundo relacionada à produção de cerveja que conheço é que, ao mesmo tempo em que permite a adição de qualquer insumo natural, ela restringe da obtenção do selo aquelas cervejarias que realizam procedimentos que tenham como objetivos únicos a redução de custos e o aumento do shelf-life das suas cervejas (comuns em cervejarias industriais), como: produção de mosto high-gravity, estabilizantes, filtração PVPP, uso de extratos de malte e de lúpulo e qualquer tipo de pasteurização, que ironicamente, são procedimentos permitidos pela lei da pureza atual.
O consumo de cerveja na Alemanha vem caindo nos últimos anos e a geração mais jovem de lá vem consumindo cada vez mais cervejas importadas, porque buscam características diferentes que não encontram entre as milhares de opções locais. Respeitando toda a tradição milenar do país, a proposta da Deutsche Kreativbrauern é uma atualização necessária de uma lei retrógrada. Reformá-la não significa acabar com a tradição, mas se atualizar com o resto do mundo e promover a diversidade já existente e para as possibilidades ainda futuras no mundo da cerveja.
Lembremos que a cerveja é 9 mil anos mais antiga do que essa lei que instituiu uma fórmula única de se produzi-la, ignorando que ela sempre foi feita com os mais diversos ingredientes disponíveis nos seus respectivos locais de origem. Torço para que esse projeto vá para frente e que tenhamos novidades em breve!
* Esse texto é uma contribuição para o BarDoCelso.com feita pelo Gabriel Rocha, designer gráfico, cervejeiro e sommelier de cervejas, 5º colocado na 4ª Edição do Campeonato Brasileiro de Sommelier de Cervejas, realizado em 2017.